domingo, 20 de junho de 2010

Generosidade

A religião católica é francamente dominante na Itália. Ela influencia, também, a vida secular. Essa influência, no geral da população, parece ter como principal característica uma vinculação maior à “tradição”, a qualquer tipo de tradição. Uma espécie de “mal entendido religioso”. Só pra dar um exemplo, aquela coisa dos homens nas praças e das mulheres em casa.
Por outro lado, os religiosos mesmo, pelo menos a maioria, produzem um ar de generosidade que se espalha por todo o país. Claro, eu sou suspeita pra analisar isso. Sou católica, ou fui, não sei... Seja lá como for, tão isenta quanto posso ser, o que vejo é que, onde eles estão, o “clima” muda. Eles fazem a diferença.
Li uma vez num sociólogo famoso – que, aliás, é ateu - que a idéia de “amar ao próximo como a si mesmo” inaugurou um modo de vida completamente diferente na história. E isso me pareceu muito certo. Tudo o que tenho visto de bom veio daí. Imaginar o mundo sem isso – e ainda que este mundo seja, como resultado do “contrato social”, regulado pelo Direito e pelas leis – é extirpar a generosidade desse mundo.
Ser generoso é ir além do compromisso... É se antecipar à necessidade do outro. Prever aquilo que vai machucar o outro e evitar que aconteça. É ser gentil. Ter delicadeza com o sentimento alheio, mesmo que ele seja diferente do próprio...
A dificuldade é que, para isso, é preciso ser capaz de compreender as coisas com o código interpretativo dele. Então, me parece que a generosidade tem como pré-requisito, em alguma medida, um acervo emocional diversificado. É difícil compreender o outro sem ter “andado alguns quilômetros com o seu calçado”. Sem ter vivido algo similar ao que ele vive – se não em termos de experiência mesmo, pelo menos em termos de dor... É daí que vem a vontade de evitar a sua dor, como teríamos vontade de evitar a nossa...
Outro requisito que considero essencial neste caso é a experiência prévia do amor. Ninguém dá o que não tem. Quem nunca foi amado não sabe amar. E esse talvez seja o maior empecilho à disseminação da generosidade: está faltando amor no mundo.
É aqui que a crença num Ser Superior faz toda a diferença. Porque Deus é amor. Seja lá de que religião estejamos falando, nunca vi alguma que negasse essa afirmação. A experiência de SER AMADO é, sem dúvida nenhuma, a mais profunda que qualquer ser humano pode ter. Então, se a pessoa tiver a sorte de ser incondicionalmente amada por alguém (o que reputo extremamente raro de acontecer, pois todos temos dificuldade de amar – não é fácil....), ótimo. Me parece que ela tem grandes chances de ser muito saudável, podendo viver toda a gama de bons sentimentos que isso implica, como a generosidade, a gratidão, a alegria, a serenidade e por aí vai.
Mas se, como a grande maioria do mundo, essa pessoa tiver tido experiências não muito consistentes de amor, ela vai sair pela vida procurando isso, com as suas frágeis ferramentas – aquelas que nossa cultura nos fornece -, essas ferramentas que não parecem ser nada adequadas a essa busca. E aí vamos nós, truncados nessa tarefa monumental, mais errando do que acertando, até que, de tão cansados, sentamos na beira do caminho e, eventualmente, desistimos desse objetivo.
Talvez isso tenha acontecido comigo. Talvez eu estivesse na beira do caminho quando o amor chegou. Talvez eu tenha falhado nas minhas estratégias de busca – e talvez mesmo isso fosse necessário, porque elas estavam, na realidade, atrapalhando...
E então começou um longo, possivelmente interminável percurso de aprender a amar – e, mais do que tudo, a ser amada. Foi difícil. É difícil ser amado. É muito mais fácil ser infeliz do que feliz – e, mais fácil ainda, negar pra si mesmo a própria infelicidade.
Já comentei que, para ingressar neste caminho, tive que abandonar o controle das coisas – eu tinha muito apreço pelo controle. Fui deixando nas mãos de Deus os muitíssimos detalhes da minha vida (e das alheias...) que eu tentava controlar. A grande dificuldade disso é que a gente não tem muita certeza do resultado. Aliás, controlando também não tem. Mas se ilude que tem. A fé, ao contrário, é um salto no escuro. Quem quer saltar no escuro? Ninguém. Só quem precisa. E eu precisava.
Saltando, vi que Deus repetidamente me segurava. Nas coisas que eu deixava com Ele, tudo se ajeitava e, mais ainda: eu sempre ganhava algo em troca. Mesmo que o resultado não fosse o que eu esperava (e geralmente era assim que acontecia), sempre aprendia algo de útil. E o tempo todo Ele agia com gentileza.
Nesse processo, fui compreendendo o que era generosidade. Comecei a tentar aplicar em minha vida diária a experiência que tinha com Ele. Ele era gentil comigo – eu podia tentar ser gentil com os outros. Ele aliviava meus sofrimentos – embora não me livrasse da dor. Eu tentava fazer isso também: mesmo sabendo que não tinha o poder de eliminar os problemas dos outros, buscava, dentro de minhas limitadas possibilidades, não aumentar suas dificuldades. Fui vendo que dava certo, que minha vida e meus relacionamentos ficavam muito melhores assim. Constatando isso, nasceu uma enorme gratidão em meu coração. Eu estava aprendendo a amar, porque tinha me deixado amar...
Vi também que era importante me livrar do sentimento de culpa para obter algum progresso. Porque culpa é controle degenerado. No início, quando percebi que não tinha controle sobre muitas das coisas que pensava controlar – e ainda assim não me conformei com isso – surgiu o sentimento de culpa. Uma espécie de birra em relação à impotência. Durante muito tempo, todo o meu acervo emocional se reduzia à culpa: “amava” por culpa, me solidarizava por culpa, sofria por culpa, enfim, tudo era culpa... A culpa é um processo autocentrado e, portanto, destrói a generosidade. Quem ama por culpa está focado em si mesmo e, dessa forma, completamente inviabilizado no que se refere a compreender a perspectiva alheia. Fica incapaz para a troca.
Em todo este percurso, tenho observado que a generosidade é muito, mas muito melhor para quem “dá” do que para quem “recebe”. É aquela máxima franciscana: “é dando que se recebe”. Parece piegas, mas, na minha interpretação, é a pura verdade. A cada gesto generoso nosso coração ganha um mundo de felicidade e serenidade. A cada gesto egoísta, um mundo de amargura e agonia... Não vale a pena...

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